D'APRÈS Um Vicente, algures entre LISBOA - LONDRES - XANGAI - BRUXELAS

segunda-feira, março 20

Bucaresti I - os senhores Vlad, Mihai e George

Caríssimos amigos,

As minhas incursões pelo leste da Europa continuam! Começaram no já distante verão de 1996 na Eslovénia (lembram-se JES, MS, SM?) e já duram há cerca de 10 anos (juro que não tinha nenhum plano, a verdade é que as oportunidades foram aparecendo). Seguiram-se a Croácia, Hungria, Sérvia e Albânia. Não visitei ainda Hungria ou Eslovénia depois de terem entrado na UE, pelo que uma das memórias comuns que guardo de todos é a do estado de espírito que se sentia por lá: o de um tempo de transição entre um período da História e outro, e um misto de excitação e dúvidas pelo novo. Para os mais jovens novas oportunidades de vida e profissionais, poderem viajar e conhecer pessoal na Europa Ocidental desenvolvida/capitalista; para os de mais idade o receio de que o futuro não traga nada muito melhor e que não se adaptem, mas com esperança de que tudo seja melhor para as novas gerações. Mas um tempo de mudança, e como tal vibrante.

E sempre gostei da cultura, das pessoas que fui conhecendo muitas da minha idade/geração, a estudar e\ou trabalhar na mesma área que eu e alguns amigos foram ficando. Talvez vos pareça uma heresia, mas sempre achei que nós os portugas e a malta destes países do sudeste europeu temos várias parecenças: uma mistura de alegria, afabilidade e uma certa manha (às vezes em excesso...), mas também alguma melancolia. Na minha cabeça o estereótipo dos povos frios de leste por oposição aos povos calorosos do sul da Europa é falso ou tem mais a ver com os países bálticos, os russos ou os escandinavos do que com balcânicos - basta ter ido a um casamento ou uma festa para aquelas bandas. Deve ser porque há neles também muita influência da cultura mediterrânica, embora combinado com outras influências, claro. Mas nisto do leste há quase tanta diversidade entre estónios e albaneses como entre suecos e espanhóis! E tambem já me disseram para acabar com a treta do "leste": segundo um colega checo tanto o seu país como a Hungria são paises do Centro da Europa, e que o leste é a Ucrânia ou a Rússia. E tem razão, geográfica e objectivamente falando, mas a conotação das palavras demora tempo a mudar...

Desta vez vim parar à um pouco longínqua Roménia. Mesmo a partir de Bruxelas são cerca de 3 horas de viagem até Bucareste, portanto mais ou menos o mesmo que de Bruxelas para Lisboa. A primeira imagem que tive, a partir da janela do avião da TAROM, foi a de uma planície bastante extensa (até perder de vista) de terra agrícola. Era um domingo no final de fevereiro, e até à semana anterior tinha estado tudo coberto de neve branquinha (idêntico às fotografias do FCA de Janeiro no berra-boi) - o inverno por estas bandas continentais não é como em Brussels city, é bem mais agreste. A minha vinda coincidiu com o degelo, e entre o branco da neve e o verde da erva na primavera cabe um período intermédio de amarelo empalhado - tudo seco de uma forma que parece o sul da Europa no verão. Desde os arredores da capital até aos parques no centro quase só natureza morta, lagos na fase do degelo, mas as ruas cheias de pessoas a desfrutar um dia luminoso, de céu azul e promessa de primavera no ar.



Tem sempre piada chegar a uma cidade que não se conhece e ir deambulando e colhendo as primeiras impressões. Uma das ideias pré-concebidas que tinha dos romenos (a mesma que tinha dos albaneses, vá-se lá saber porquê...) era de serem maioritariamente de pele escura, meio ciganos e sempre com uma esponja e detergente na mão... Ouve-se muitas vezes falar da etnia cigana como populacao Roma, e pensava eu que Romania seria a terra dos Roma. Grande erro, na verdade 90% dos 22 milhões de habitantes do país são romenos, 7% húngaros e apenas os restantes 3% são Roma ou de outras etnias/nacionalidades. Isto para dizer que a maioria das pessoas são de pele bem mais branca que eu próprio, de ar eslavo (loiros e olhos azuis) - eu diria mesmo que o saudoso Laszlo "Je suis très content" Böloni ou o Timofte são típicos representantes da maioria dos romenos, tal como a Nadia "10" Comanesci.

O que nos une realmente a esta malta é a língua, de raiz latina e segundo dizem mais próxima do latim original que português, italiano, francês ou espanhol. É incomum para estes lados da Europa andar na rua e entender uma parte do que se lê nos cartazes, nas placas das ruas ou nas lojas - deste ponto de vista estar na Hungria ou na Albânia é quase o mesmo que na China! Passar por qualquer loja de roupa e ver escrito "Casa de Moda" têm que convir que é no minimo refrescante, embora boa parte do resto me passe ao lado! E isto é algo que os distingue de facto dos países em redor e que constitui um factor de identidade nacional forte.

Esta ligação ao Mundo Latino vem do início do séc. II d.c. quando os Romanos conquistaram o território dos Dácios, e passaram a chamar a nova província de "Dacia Felix". Segundo reza a História a abundância de ouro na Dácia era tão grande que o Imperador Trajano deixou de cobrar impostos aos habitantes de Roma durante uns anos.

Até ao séc. XV não há grandes factos dignos de nota, mas nessa altura surgiu uma das figuras nacionais romenas - o rei Vlad Dracul, o Impalador. Como devem imaginar o tipo era um duro como já não se fazem hoje em dia, saído das catacumbas da Idade Média na Europa Central. Tinha por hábito e tradição de família impalar e deixar nas ruas tipos porreiros como os invasores eslavos, visigodos e orientais. Mas parece que o que lhe dava mesmo gosto era impalar turcos - o tipo foi um pilar na resistência contra as invasões otomanas àquela parte da Europa no tempo do Mehmet II, que chefiava um dos maiores exércitos do Mundo na altura.
A propósito do amigo Vlad, perguntei outro dia a um bacano romeno como é que um irlandês de Dublin chamado Bram Stoker se interessou por fantasiar acerca de um personagem romeno medieval - teria vivido na Transilvânia (nome ainda hoje de uma província no centro do país, que inclui as montanhas dos Cárpatos), ou seria de ascendência romena?? Segundo me disse o rapaz, parece que o Bram teve simplesmente acesso a um livro de histórias tradicionais romenas num alfarrabista de Dublin, cujas páginas estavam cheias de desenhos a retratar os conflitos sangrentos e a barbaridade do rei Vlad. Parece que ficou fascinado, nunca sequer pôs os pés na Roménia e o resto é história da literatura, cinema, psicanálise e por aí fora.

Do séc. XV ao séc. XVIII as batalhas com os turcos foram uma constante. O Império Otomano nunca chegou a anexar formalmente a região que hoje constitui a Roménia (na altura Bucareste era a capital da província da Wallachia), mas isto foi conseguido em troca de pagamento de impostos pesados e uma submissão não formal ao sultão. Como devem imaginar a influência da Turquia por estes lados é bem mais sentida a nível cultural e político que para os nossos lados, pelo que a adesão da Turquia à UE é vista com outros olhos.

A partir do séc. XIX e até à 1ª Guerra Mundial a Wallachia e Moldávia (parte sul e leste da Roménia actual, que se uniram em 1859 para formar pela primeira vez a Roménia) constituiram um território que se tornou conhecido pelos acordos de paz entre as potências regionais e cresceu em influência diplomática. Vem deste tempo a criação das primeiras universidades (só no séc. XIX!!), muito influenciadas pelo modelo francês - as elites estudavam nas universidades de Paris, beberam das ideias da altura (tal como no nosso caso, veja-se o Eça...) e trouxeram-nas para Bucareste. Ainda hoje isso é visível na arquitectura do centro da cidade, é surpreendente a quantidade de edifícios estilo parisienne que se encontram, embora também estilo austro-húngaro!

A maior figura da cultura Romena, nascido na região da Moldávia, também é deste tempo: o poeta Mihai Eminescu já ouviram falar? É o poeta nacional, do período do Romantismo e símbolo do espírito romeno. Estudou numa cidade na altura do Império Austro-Húngaro, esteve na universidade em Viena e também em Berlim, e li que quando começou a publicar poemas mudou o seu nome original de Eminovici para Eminescu, para soar mais romeno... Marketing! Mas compreende-se porque foi um tempo em que a identidade da Roménia se estava a gerar, era preciso distinguirem-se dos eslavos, e para isso acentuaram a faceta latina na cultura. Mas sou da opinião que é difícil hoje em dia surgirem figuras tão multifacetadas como este tipo: poeta, escritor de prosa, tradutor, jornalista, director da biblioteca nacional, político e filósofo; interessado em lógica, história das religiões, sânscrito (!), Direito e super influenciado pelo Kant e Schopenhauer. Tão a ver o estilo... Tal como os nossos intelectuais da geração de 70 também ajudou a formar um grupo literário chamado "Sociedade Junimea" cujo motto era "Entra quem quer, permanece quem pode" e se destinava a promover a excelência na cultura e sociedade romenas. Morreu louco em 1889 num sanatório. Estou convencido que deve ter sido por ler demasiado Shopenhauer ;)

Quando chegou a 1ª Guerra, os tipos tiveram a sábia decisão de lutar contra os alemães, e quando se está do lado dos vencedores as coisas correm sempre melhor no pós-guerra. Com a desintegração do Império da Sissi e do FJ o território romeno foi alargado e passou a incluir a actual parte central, montanhosa e mítica do país, a Transilvânia. Bom para eles, provavelmente a partir do próximo ano vai-se assim tornar um dos maiores países da UE, só atrás dos chamados "grandes" (Alemanha, Itália, França, Reino Unido, Espanha e Polónia). A ampliação do país foi como que o regresso da antiga Dácia e o período de 1919 à 2ª Guerra foi o melhor período da sua História. Bucareste passou a ser conhecida por "Little Paris" (era moda na altura esta comparação com Paris, Xangai foi o mesmo a "Paris do Oriente"...) porque era a cidade da moda, bom gosto e da "belle vie". Eu não conhecia esta faceta porque sempre ouvi dizer que Bucareste era uma cidade muito feiota, estilo soviético puro e duro e bastante degradada depois do fim da ditadura comunista. Depois de 3 dias por lá não é essa a minha opinião. A cidade está de facto degradada, precisa de fundos estruturais europeus como de pão para a boca, but has more to it than you perceive at first sight.


Outra figura bastante famosa do período entre as duas Guerras foi o George Enescu: mais um que admito que não conhecia mas o CV é impressionante: compositor, pianista, violinista... Um dos edifícios mais belos da cidade, o Ateneu Romeno inaugurado nos anos de 1880 e projecto de um arquitecto francês, acolhe hoje em dia a filarmónica George Enescu.



Bom, e deixo este primeiro post sobre Bucareste por aqui com mais algumas fotos de Bucareste. Em próximos posts um bocadinho mais sobre o comunismo à romena, religião e quejandos!


A bien tôt!